Um aluno brilhante e um aluno zé ruela que bebe Conti beer são iguais
...se o primeiro não sabe estudar
Carta #98
Sábado, 14 de junho de 2025, 11:13.
Desde quando entramos na faculdade, estudamos os temas a partir da visão segmentada das coisas: aprendemos o que é um fígado na anatomia, vimos que ele é composto por hepatócitos, lóbulos, tríades portais e veias centrolobulares na histologia, mas não conseguimos entender, durante a disciplina de patologia geral, que a necrose de coagulação pode afetar hepatócitos.
Corrigindo: até entendemos que a necrose afeta qualquer célula do corpo, mas não temos capacidade de relacionar o fígado a este evento.
Não aprendemos a habilidade de unir os temas, para que eles façam sentido. Por isso é que o estudo fica segmentado e, ao chegar nos últimos anos, nos quais as disciplinas que ensinam doenças e seus sinais clínicos e tratamentos (as disciplinas de clínica, mais especificamente), nós as estudamos decorando tratamento, exames diagnósticos e sinais clínicos.
Quando não há união de informações, o único jeito é este: decorá-las, a fim de ser aprovado na disciplina.
O problema é que você não está em um curso de graduação com o objetivo de ser aprovado em todas as disciplinas. Você está lá para ser um (a) médico-veterinário.
Ao encostar em seu diploma e atender seus primeiros pacientes, o que já seria naturalmente difícil para um novato na área, torna-se um tormento: de repente, você se pergunta - “onde eu estive durante esses cinco (ou mais) anos de faculdade, que não aprendi a entender os sinais clínicos que existem em determinada doença, e nem aprendi o que solicitar de exames para diagnosticá-la?”
Você pode ter sido o aluno mais brilhante da turma; se não desenvolveu a habilidade de conectar uma informação à outra, sofrerá na vida real, assim como qualquer zé ruela que sentava na cadeira da sala de aula apenas para mexer no celular, mascar fumo e cuspir no lixo ou tirar o atraso da soneca que foi perdida pelas noites bebendo Conti beer quente.
Médicos-veterinários clínicos e/ou professores de clínica enchem a boca, como se estivessem provando seu prato de comida favorito, para dizerem que:
A clínica é soberana.
Não discuto com esta frase - pode até ser que ela seja verdadeira. Mas deixe-me acrescentar uma outra sentença aqui:
A clínica é soberana e a patologia, a cereja do bolo.
Diga-me se você, alguma vez, já ouviu algum professor de clínica explicar como a parvovirose (ou outra doença) acontece, para que os exames diagnósticos, sinais clínicos e tratamento façam sentido?
Não quero ser injusta, mas é que na clínica, o foco é a clínica. Presume-se que, ao chegar naquela disciplina, você entendeu (e muito bem entendido) como as doenças funcionam.
A realidade quase sempre é negativa: você não entendeu como as doenças funcionam. Automaticamente, não entenderá por que os sinais clínicos acontecerão, nem como o diagnóstico e muito menos o tratamento serão realizados.
A clínica é soberana, mas se você não entender a patologia, o resto será mato.
Bem, então hoje vou te mostrar passos simples para entender uma doença, a partir da patologia. É uma sequência de passos que você precisa seguir, quando for estudar uma doença, a fim de entendê-la por completo.
Spoiler: não é uma sequência atalho. É uma sequência que funciona muito, mas pode dar trabalho. Não se decepcione ao lê-la. Só peço que tente; tenho certeza de que você não esquecerá o básico da doença que decidir estudar, independentemente do tempo que ficar sem entrar em contato com ela.
Lá vão eles:
Antes de estudar a doença, identifique quais órgãos ela afeta.
Identifique o agente/a causa (para doenças não infecciosas) dela. Se for um agente, descubra a qual classe ele pertence (vírus, bactéria, protozoário etc.)
Agora, entenda a patogenia da doença: estude como a causa age no(s) órgão(s) alvo. Neste momento, caso tenha dúvidas em relação à circulação sanguínea, anatomia, histologia ou fisiologia do local (especialmente em doenças metabólicas), revisite essas particularidades. Você verá que ficará mais fácil de entender as consequências da doença naquele tecido.
É hora dos achados de necropsia. Este é o melhor momento para se entender as lesões. SIM, VOCÊ QUE NÃO SERÁ PATOLOGISTA TAMBÉM PRECISA PASSAR POR ESTA PARTE DO ESTUDO, ou vai me dizer que você não analisará hemograma, leucograma, imagens etc. etc. etc.? Estudar lesões ampliará seu conhecimento a respeito das consequências que você poderá encontrar nos exames complementares do paciente.
Agora, sim, os sinais clínicos. Estude-os.
Depois de tudo isso, entenda por que a doença acontece: em outras palavras, estude a epidemiologia.
Chegou a hora do diagnóstico. Como diagnosticar e quais exames são necessários.
Por fim, estude o tratamento, a prevenção e o controle.
Bônus: aos futuros patologistas, adicione a etapa MICROSCOPIA após os achados de necropsia.
Escolha uma doença, estude seguindo esses passos e volte para me contar como foi.
“Como estudar patologia” é uma das várias aulas que fará parte do Projeto R1 em Patologia Veterinária, o meu preparatório para a residência em patologia. Em breve, abrirei vagas com preço e condições especialíssimas para a primeira turma. Logo, avisarei a data de abertura em todos os meus canais de transmissão.
Te vejo na próxima carta,